sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

4ª dose

Fui criança só uma vez. Infância tive várias. Hoje uma infância me visitou, meio apagadinha, bem leve. Rápida, dissolveu na língua, mal passou o vendedor de algodão-doce na minha rua.



Tarefa de escola nº 2 – Desenhe sua família identificando cada integrante. Você pode colorir o quanto quiser.


Dizem que as pessoas que colecionam coisas tentam cobrir algo que lhe falta. Miguel coleciona de tudo. De uns tempos pra cá deu pra colecionar buracos. O primeiro é um que ele carrega no peito. Depois vem os outros. Nos álbuns de figurinhas deixa faltar uma e nem sempre é a mais difícil de achar. Vindo da escola ele conta os buracos no asfalto, apareceram dois novos essa semana. Antes de dormir ele tira um dos bonequinhos de brinquedo enfileirados na cômoda e coloca na gaveta, faz questão de deixar um lugar vago na fila imensa. Às vezes não é ele que controla essa ausência. Nas fotos de aniversário, uma cadeira sempre ficou vazia e naquela da parede da estante, tá lá ele, de goleiro, a bola na marca do pênalti sem ninguém pra chutar. O avô é que bateu as fotos.
Pendurado na parede o seu desenho, a professora examina. Vê um morrinho inventado e no topo uma moça bonita de vestido florido, acima da cabeça um MÃE, “bem maiúsculo mesmo”. Em seguida vem o vô, sentado, “pra não cansar muito ou me esperando pra ouvir suas histórias”. Entre os dois tem o Miguel, com o buraquinho no peito. Aos pés do vô, seu inseparável companheiro, o cachorrinho Listrado. Depois do Miguel, o Listrado é a alegria do vô.
A professora quis entender o que era aquela coisa circular, pintada de preto, um pouco torta, bem no canto do desenho, quase caindo da folha.
- Um buraco ué!
- E aquele p - saindo do buraco?
- Não tá saindo não tia, tá entrando. Olha lá, o - ai até já tá dentro.
- Por quê?
Miguel lembrou dos porquês colados no caderno, não sabia qual usar nessa situação, então usou o da mãe:
- Quando eu pergunto onde tá meu pai, minha mãe sempre diz “e eu lá vou saber em que buraco seu pai se enfiou?”.
A professora deu um passo pro desenho do lado com o p- na garganta, minúsculo mesmo, mas difícil de engolir.

Um comentário:

Gabriela Holz disse...

todos nós colecionamos buracos