quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

15ª

A professora disse que tinha perdido a imaginação, que não tinha mais idéia de história nenhuma pra contar. Isso dói nos ouvidos das crianças. Como a imaginação vai embora assim? Mas numa caixa de sapato ela tinha a solução. Todos queriam ver embora não acreditassem que o vô da profe coubesse lá dentro. Aos poucos ela foi mostrando o velhinho. Primeiro as pernas fazendo estripulia pra fora da caixa, depois foi-se revelando o corpo todo até chegar no sorriso que, naquelas alturas, era o mesmo em cada carinha de olhos atentos. De repente uma pergunta de todos na voz de um, uma menina soltou para o boneco “como é que você abre os braços assim?”. O vô respondeu na lata “como você abre os seus, do mesmo jeito”. E o vô foi perguntando o nome de cada um, emendando uma história na outra. Aos poucos, do jeito que só os avós sabem fazer, a sala inteira estava entregue àquele pedaço de pano pulsante manipulado pela professora. No final da aula aquela menina pediu pra pegar o vô da profe na mão, ela queria entender, não estava contente com a resposta. Mas calma, não se engane, isto não é incredulidade. A professora atendeu o pedido. Com a mão vestindo o fantoche a menina esperou e esperou, os olhos querendo flagrar o primeiro movimento. Nada. “Ele não mexe, ó! Ele não mexe profe!” A menina perguntou com os olhos “por que na minha mão o vô Tonico não se mexe? Nessa hora, a professora perdeu a realidade.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

14ª

Não sei o que vai dentro
Se é só saudade.
Mas de fora, vem o cheiro
E invade
Talvez seja minha alma voltando
Pra ver como vão as coisas.

Vem o gosto na boca:
dança de roda, futebol na rua,
corrida atrás de pipa,
joelho ralado, casa na árvore,
colo de mãe, abraço de pai,
e muito açúcar, (não pode faltar).

O tempo, vai cozinhando minhas lembranças,
Em fogo baixo.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

13ª

Se coração de mãe já é grande, vó deve ter dois. Por isso que casa de vó é um aconchego só, pro resto da vida. Os filhos crescem, mas os netos jamais. E neto que é bom, não esquece isso. Conheço um desses que chega na vó como quem não quer nada pra conseguir tudo.
- Hei vó, não precisa se incomodar em fazer um bolinho de chuva pra mim não!
- Não é trabalho não meu filho!
- Ai vó, saudade daquele cafezinho com leite que só a senhora sabe fazer.
A vó não perde tempo enquanto o neto se espalha no sofá perguntando se ela quer ajuda. Tá armado o teatro, aquele acordo silencioso, gostoso, só no gesto. Amor doce.
Fico pensando: os bons malandros devem ter as melhores avós.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

12ª

O pai estava preocupado. Há dias o filho não tirava os olhos da parede. “Talvez seja a televisão”. Chegou mais perto, viu a solidez da parede, o menino via além. A mulher dizia que era coisa de menino, e lixava as unhas. Para ele, coisa de menino era coleção de figurinhas, vídeo-game, coisas assim. “Agora, ficar olhando uma parede como se o mundo tivesse parado, era estranho demais! O que os outros vão pensar?”
A verdade é que o menino sempre teve os olhos voltados para outras coisas. O pai não entendia. O caso era que o filho mal piscava os olhos quando o pai saiu para o trabalho. “O que se passava na cabecinha dele?” O pai pensou “daqui a pouco passa” enquanto tirava o carro da garagem. Pensou melhor, “e se não passa?”
Pedro seguia a rotina dos meninos da sua idade, o pai decidira há dois meses, antes de ser transferido para a nova cidade, “o Pedro vai ter que se acostumar”. O menino tentava acostumar-se com a rua de barro sem saída, com um terreno baldio no final, barro e mato, depois do mato um muro alto e comprido. Para o Pedro, aquilo era novo, o que soava estranho para os outros meninos. Logo, ele era estranho também.
Todas as tardes os meninos o viam sentado numa pedra enorme no terreno riscando o chão com um galho seco até a hora que a mãe o chamava. Só não entenderam quando, num dia desses, o Pedro começou a se sujar de barro perto da hora que a mãe sempre chamava, depois corria de um lado pro outro até um fiozinho de suor escorrer pelo rosto. Então a mãe gritava “Pedro”! Ele atendia. Todo dia o mesmo ritual.
O pai levantava cedo, ligava a TV pro Pedro, ia pro trabalho, voltava tarde, conferia o cesto de roupas e se contentava. Era o seu ritual. Ao retornar naquele dia em que se assustou com o filho olhando sei lá o quê na parede, o sangue ferveu ao descobrir a roupa limpa no cesto. A mãe explicou que todo dia ajudava o Pedro a trocar a roupa da escola, olhava ele chegar ao terreno, fazia as coisas da casa e esperava a hora de chamá-lo, conforme o ritual que o marido tinha lhe dado. Ele esquecera de acrescentar à mulher que a roupa deveria estar suja. Ficou com raiva. Silêncio. Ela esperava a reação do marido, era boa em esperar.
Em disparada pro quarto do Pedro, o pai pensou em sacudi-lo até que dissesse algo. Abriu a porta, a luz do corredor revelou a cama. O menino deitado, tranqüilo, de costas, o rosto voltado pra janela fechada. Viu o filho dormindo. Já Pedro, sentia o pai fechando a porta e sumindo. Os olhos do Pedro vidrados num filete de luz vindo da rua. Ele não sofria de nada, uma hora acaba falando. O pai e a mãe esperaram.. A vida seguiu seu curso e o casal passou se esqueceu da vida íntima, daquilo que aproxima os casais, do casamento. Perderam a cumplicidade.
Naquela tarde em que Pedro não se sujara, os meninos notaram algo diferente nele. Não estava sentando na pedra de sempre. Os olhos haviam encontrado aberturas estreitas e compridas no chão seco. Perdeu o olhar nelas e foi seguindo o caminho que elas formavam. A tarde já anunciava a noite e o Pedro continuava no caminho sem dar conta do tempo, até dar de cara com o muro alto no fim do terreno.
Foi só no quinto chamado que o Pedro atendeu a mãe, que também não deu conta do tempo, como se tivesse chamado o filho apenas uma vez. Quando o marido voltou do quarto do filho, quem levou a sacudida, foi ela. Ele esbravejou, ela ouviu. Os dois choraram juntos. Foi a primeira vez que o silêncio os confortou. Abraçados, deixaram a noite cair. A esperança pegou carona num filete de vento vindo da janela.
No café da manhã de sábado, Pedro viu os pais sentados lado a lado à mesa, tirou o miolo do pão e os espiou pelo buraco. O pai tentou sorrir, a mãe pegou o pão do menino e passou margarina. Pedro não sabia que o pai ficaria o fim de semana inteiro em casa, sem clube, futebol nem carteado, nem que o pai o vira desencostar a TV da parede pra olhar mais de perto a rachadura. Sequer se dera conta do pai seguindo-o até o muro que ele tanto olhava. O pai fechou as mãos, hesitou. Precisava de uma solução.
No almoço Pedro ficou sob o olhar vigilante do pai. Finda a refeição, a mãe foi pro ritual de sábado, Pedro retirou um livro da estante e foi pra sala, o pai logo atrás, escondido numa leitura fingida de um jornal velho. O menino colocou o livro deitado na frente dos olhos abrindo-o só um pouquinho. Pela abertura olhou em volta da sala, depois a rachadura da parede. Dentro dela e mais além, um universo inteiro se abria só pra ele. A respiração tranqüila, o corpo relaxado, a mente voando longe.
Os olhos do pai passando por cima do jornal, depois acima da cabeça do Pedro, pela abertura do livro até a parede, sem entrar na rachadura. O pai, congelado, tentava entender. O corpo tenso, as mãos suando. Susto: o livro estava virado em sua direção, com um olhar profundo no outro lado. Não conseguiu encarar. Saiu da sala, atordoado. Tentou dormir. Trancou-se no banheiro, “um banho gelado dá cabo nisso”, porém o olhar do filho o seguiria aonde fosse.
O pai se viu nos olhos do filho, viu a própria fraqueza. Isto doía no orgulho de homem. Sentiu ódio do menino, depois de si mesmo. A tranqüilidade inabalável do Pedro era um tormento e seu olhar intenso estava impresso a sua volta, nos azulejos, na pia, na porta fechada. Lembrou da perseguição ao filho, das roupas limpas no cesto, do ritual dado à mulher, das mudanças de cidade. Susto maior: refletida no espelho, a rachadura da parede da sala. O que fazer?
Era noite quando saiu do banheiro, decidido, rumo ao quarto do Pedro. Encontrou a mulher no corredor, olharam-se por milésimos de segundo e entenderam-se. Ela, do lado de fora, calma como de costume, deixou-o entrar. O marido parecia outro, um tom de alívio no rosto, “dever cumprido”, quando saiu do quarto deixando atrás de si, apenas uma fresta.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

11ª

Madrugada na cara, o sono foi embora. Já é amanhã a mais de uma hora e não me despeço do hoje-ontem. Isso é um luxo em dias tão ligeiros ou um engodo para o corpo, que cansa. O menino me segue pelos cômodos em fotografias sem assinatura. Eu sei de onde vem. Na parede a infância azul compete com o amarelo do tempo enternecendo o reboco, o concreto, a ferragem galvanizada. As memórias estão sempre à minha espera nas esquinas, que são outras. Outras, como minhas faces, que são a mesma por debaixo da calvície que vem, do grisalho nascente, da metamorfose que sou. Sigo então, com o aparente sem-assunto de costume, tão recorrente em mim que às vezes acredito ser o menino frente uma visão futura, sem compreender e sem se dar conta disso. Então o alívio não vem, nem eu o quero. Cultivo essa ausência de senso, como se fosse a dor de amor. E a infância, não é um amor que se foi?