segunda-feira, 5 de abril de 2010

18ª

As sábias lições de Thiago parte I - O perigo das frutas

Dizem por aí que tudo que é demais é veneno. Thiago me ensinou algo parecido com isso no consultório médico. Aos cinco anos é especialista em fotografias de revista de consultório. Numa propaganda de suco de frutas ele viu pessoas com copos e garrafas de suco de banana e morango, e na seqüência as mesmas pessoas com as mão vazias mas no lugar das cabeças, um morango e uma banana sorridentes. Não teve dúvida: “quem come muito morango, fica com cabeça de morango, quem come muita banana, fica com cabeça de banana”. E foi além, “quem toma muito suco, fica com cabeça de garrafinha de suco”. Depois ele confidenciou preocupado, “adoro maçã” e se encostou pensativo na poltrona da sala de espera.


Parte II – alguém viu um patinador de gelo por aí?

Thiago é freqüentador assíduo do consultório, na mesma semana acompanhou a mãe e o pai para examinar seus estômagos. “Eu não preciso né mãe, porque já tomei bastante injeção, né?” (ele faz questão de pronunciar bem as vogais). A mãe concorda carinhosa enquanto folheia uma revista qualquer. Ele conhece todas as revistas de trás-pra-frente-de-frente-pra-trás e a que mais gosta é daquele patinador do gelo. (O fotógrafo deve ser dos bons, daqueles que capta o movimento com precisão tamanha que o patinador parece que vai sair da folha. Mas não sei direito, não vi a foto.) A mãe insiste em mostrar a revista. Thiago, superior, solta “não precisa me mostrar mãe, porque eu já vi ta bom?”, mas não tira o rabo de olho de cada folha. E completa certo de si, “essa é do patinador do gelo”, Repete como se ele próprio fosse o “patinador do gelo”. A mãe entra no jogo, passeia devagar pela revista, provocando. Perto das últimas páginas, Thiago estranha, e do desinteresse fingido se entrega. Com a cabeça no ombro da mãe e os olhos tocando as fotografias coloridas, constata: “ué, o patinador não tá mais na revista!? Hum, deve ter ido embora...”

quarta-feira, 17 de março de 2010

17ª

Luis Xavier. Pescador, caçador, e contador de histórias, isso praticamente é ser contador de histórias por três vezes ao mesmo tempo! De todas as mentiras que ele já contou, a mais verdadeira foi aquela de quando pescou um bagre que tinha engolido um rádio. O pessoal do boteco do Keka já levava tudo como a mais pura verdade, porque a diferença é pequena mesmo, ainda mais quando você é quem escolhe. O seu Luis, acreditava em tudo o que contava sempre. E foi assim com a história do bagre.

- Conta aí seu Luis, aquela do bagre.

Certo dia, voltei da pesca, limpei um bagre que tinha pego, gordo, barbudo. Botei a cabeça do bagre apoiada numa boca apagada do fogão"pra fazer companhia" hehehe. O resto do peixe na frigideira. Chiaço normal do óleo quente...de repente um barulho estranho: zzzzum...ióóó...ziunzoim...schiiiii....tic tic tic....zzzzziiiinn.... Aquele susto. Num entendia de onde vinha, olhei pros zóio de peixe morto da cabeça do bagre, pra saber se o bicho tava morto mesmo. Vai saber, hoje em dia... Falei pra cabeça: "Tu, eu sei que não falou".
- E o bagre seu Luis?
- Pior que num respondeu. Virei o bicho na frigideira e o ruído parou. Olhei de novo, desconfiado, pra cabeça mas não vi diferença nenhuma no olhar do bagre. Virei de novo na frigideira, comecei a bater com o garfo na barriga do bicho e o som voltou. Dei uma batida mais forte e aumentou o volume. Dei outra com a mesma força e o volume aumentou de novo. "To pegando o jeito", pensei. Baixei o fogo e fiquei ali, fritando o peixe, batendo uma vez com força e outra vez mais leve. Experimentei bater com a faca pra ver que efeito dava. Um bagre na minha mão, leva uns quinze minutinhos pra ficar pronto, aquele não, já se iam uns quarenta que eu tava virando, batendo, garfando, tudo em fogo baixo, já disse. O arroz tava frio na mesa e a água pro pirão ia ter que voltar pra chaleira. E eu não sossegava, suado, insistia em maltratar o bagre. Enfim, depois de tanto cutucar o peixe, que de peixe só tinha a lembrança e o cheiro espalhado pela casa, consegui sintonizar uma estação de rádio. E vocês não vão acreditar...
- Fala homem.
- A pilha acabou e eu saí pra comprar comida, que eu tava cuma fome!

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A verdade melhor, é que eu realmente conheci o seu Luis Xavier!

segunda-feira, 15 de março de 2010

16ª

Os dias em que mais tenho coisas a fazer são os que mais me fazem pensar em coisas além das quais eu devia fazer.
Hoje me peguei pensando, estou a quase dois anos trabalhando no Poder Judiciário de Santa Catarina, na área criminal. Algo muito diverso do que pensei pra mim, embora tenha feito o concurso em 2005. Estava atrás de um emprego na época. Acabei sendo chamado 3 anos depois, sem esperar, justo na fase do desespero pós-universidade, quando a gente desperta pro mundo e se dá conta de ser um desempregado graduado! Mas quero chegar em outro ponto. Quando entrei no Judiciário, encontrei um universo em grande parte diferente do qual estive imerso nos 4 anos de universidade. Me deparei com muitos preconceitos, inclusive os meus! Sempre me chocou a visão de algumas pessoas acerca dos presos e de seus crimes. Aprendi com amigos e professores a analisar contextos que condicionam as ações humanas em diversos âmbitos, a respeitar diferenças, compreender ou buscar a compreensão dos processos porque passam as sociedades, os grupos, as comunidades. Já no primeiro mês de trabalho tivemos de prender uma pessoa que descumprira algumas condições de sua pena. As minhas pernas tremiam, meu coração disparou, suei frio, tive vontade de chorar, me senti um lixo, meu corpo todo se contraiu com a cena. Me disseram que com o tempo me acostumava. Mas pra mim era certo, "não tem como me acostumar". Naquele momento não me importava que delito o fulano tinha cometido, quem fora a vítima. Ele era um ser humano sendo privado da liberdade. Mais tarde, fiz uma visita ao Presídio Regional de Joinville. O cheiro que sobe das celas imundas é desagradável. Porque não é cheiro de roupa suja, de chão sujo, de resto de comida, de fezes e urina, mas sim, cheiro de GENTE, de pela ensebada, de suor, de privação, de raiva, de medo, de rancor, de vingança, de conformidade, uma mistura que não desce por estômago nenhum. Saí de lá com no mínimo o triplo do meu peso sobre os ombros. No decorrer de quase dois anos, muitas pessoas foram presas no balcão, por motivos semelhantes e justicativas diversas. Passei a compreender o "processo" de pessoas que pouco se importavam, ao meu ver, com o "processo" dos condenados. E percebi que aos poucos a gente se vê imerso numa realidade que poucos conhecem. Outra sensibilidade se constrói. E é muito difícil você olhar o outro, o condenado, sem julgá-lo. Sempre repeti para mim mesmo. O condenado já foi julgado pelo juiz, não cabe a mim fazer o mesmo, não é minha função. Hoje percebo que de certa forma, o julgamento começa por nós, funcionários/pessoas comuns pelo menos em termos de moral. E nossas ações, nossas obrigações são apenas a continuidade daquilo que a sociedade ofereceu, ou deixou de oferecer para todos e que se materializa no cumprimento seco e por vezes literal da LEI. Até aí nenhuma novidade, apenas uma velha constatação. O que me dói hoje, é perceber em mim uma raiva daqueles que cometem crimes bárbaros, daqueles que não saem do mundo do crime. Não mudou a minha percepção e entendimento da realidade que pode ter levado as pessoas a cometerem seus crimes, embora questione muitas vezes o momento da escolha que acredito ter havido em muitos dos casos. Não sei, mas às vezes penso que por mais que nossas ações sejam reflexos da coletividade, das circunstâncias e condições que nos cercam, talvez exista um momento X de individualidade que não me permite aceitar a escolha feita por uns - o estupro de uma criança, o assalto a uma velhinha, o sequestro, o atropelamento causado por um bêbado, o tráfico e tudo mais. Daí passa pela cabeça, a lei do Taleão, "olho por olho, dente por dente", e me percorrem por dentro desejos odiosos e tristes. Então me deparo com uma face de mim que negava anteriormente. Isso me desestabiliza. Falo daquela raiva e daquela fala dura de muitas pessoas, "tem que sofrer pra pagar, pena de morte, paredão". Mas isso não é nada definitivo, pelo contrário, denota mais o grito causado pela nossa fragilidade, embora não deixamos de ser algozes de certa forma. É doido, controverso e logo, infecaz, pensar em projetos de atitudes desumanas que vem em mente para proteger uma certa humanidade, isso soa um tanto "primitivo", "bárbaro". Isso me desestabiliza, mas não a ponto de abalar completamente o que acredito. Fico feliz em dizer que não me acostumei a presenciar a prisão de pessoas, que judicialmente, moralmente, que na visão popular merecem ser presas.
Não queria chegar a lugar nenhum aqui. Só falar um pouco dos meus dias.
Sou ator e professor de história (não atuante em sala de aula) e isso me salva quase sempre e me condena todos os dias, ainda bem.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

15ª

A professora disse que tinha perdido a imaginação, que não tinha mais idéia de história nenhuma pra contar. Isso dói nos ouvidos das crianças. Como a imaginação vai embora assim? Mas numa caixa de sapato ela tinha a solução. Todos queriam ver embora não acreditassem que o vô da profe coubesse lá dentro. Aos poucos ela foi mostrando o velhinho. Primeiro as pernas fazendo estripulia pra fora da caixa, depois foi-se revelando o corpo todo até chegar no sorriso que, naquelas alturas, era o mesmo em cada carinha de olhos atentos. De repente uma pergunta de todos na voz de um, uma menina soltou para o boneco “como é que você abre os braços assim?”. O vô respondeu na lata “como você abre os seus, do mesmo jeito”. E o vô foi perguntando o nome de cada um, emendando uma história na outra. Aos poucos, do jeito que só os avós sabem fazer, a sala inteira estava entregue àquele pedaço de pano pulsante manipulado pela professora. No final da aula aquela menina pediu pra pegar o vô da profe na mão, ela queria entender, não estava contente com a resposta. Mas calma, não se engane, isto não é incredulidade. A professora atendeu o pedido. Com a mão vestindo o fantoche a menina esperou e esperou, os olhos querendo flagrar o primeiro movimento. Nada. “Ele não mexe, ó! Ele não mexe profe!” A menina perguntou com os olhos “por que na minha mão o vô Tonico não se mexe? Nessa hora, a professora perdeu a realidade.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

14ª

Não sei o que vai dentro
Se é só saudade.
Mas de fora, vem o cheiro
E invade
Talvez seja minha alma voltando
Pra ver como vão as coisas.

Vem o gosto na boca:
dança de roda, futebol na rua,
corrida atrás de pipa,
joelho ralado, casa na árvore,
colo de mãe, abraço de pai,
e muito açúcar, (não pode faltar).

O tempo, vai cozinhando minhas lembranças,
Em fogo baixo.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

13ª

Se coração de mãe já é grande, vó deve ter dois. Por isso que casa de vó é um aconchego só, pro resto da vida. Os filhos crescem, mas os netos jamais. E neto que é bom, não esquece isso. Conheço um desses que chega na vó como quem não quer nada pra conseguir tudo.
- Hei vó, não precisa se incomodar em fazer um bolinho de chuva pra mim não!
- Não é trabalho não meu filho!
- Ai vó, saudade daquele cafezinho com leite que só a senhora sabe fazer.
A vó não perde tempo enquanto o neto se espalha no sofá perguntando se ela quer ajuda. Tá armado o teatro, aquele acordo silencioso, gostoso, só no gesto. Amor doce.
Fico pensando: os bons malandros devem ter as melhores avós.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

12ª

O pai estava preocupado. Há dias o filho não tirava os olhos da parede. “Talvez seja a televisão”. Chegou mais perto, viu a solidez da parede, o menino via além. A mulher dizia que era coisa de menino, e lixava as unhas. Para ele, coisa de menino era coleção de figurinhas, vídeo-game, coisas assim. “Agora, ficar olhando uma parede como se o mundo tivesse parado, era estranho demais! O que os outros vão pensar?”
A verdade é que o menino sempre teve os olhos voltados para outras coisas. O pai não entendia. O caso era que o filho mal piscava os olhos quando o pai saiu para o trabalho. “O que se passava na cabecinha dele?” O pai pensou “daqui a pouco passa” enquanto tirava o carro da garagem. Pensou melhor, “e se não passa?”
Pedro seguia a rotina dos meninos da sua idade, o pai decidira há dois meses, antes de ser transferido para a nova cidade, “o Pedro vai ter que se acostumar”. O menino tentava acostumar-se com a rua de barro sem saída, com um terreno baldio no final, barro e mato, depois do mato um muro alto e comprido. Para o Pedro, aquilo era novo, o que soava estranho para os outros meninos. Logo, ele era estranho também.
Todas as tardes os meninos o viam sentado numa pedra enorme no terreno riscando o chão com um galho seco até a hora que a mãe o chamava. Só não entenderam quando, num dia desses, o Pedro começou a se sujar de barro perto da hora que a mãe sempre chamava, depois corria de um lado pro outro até um fiozinho de suor escorrer pelo rosto. Então a mãe gritava “Pedro”! Ele atendia. Todo dia o mesmo ritual.
O pai levantava cedo, ligava a TV pro Pedro, ia pro trabalho, voltava tarde, conferia o cesto de roupas e se contentava. Era o seu ritual. Ao retornar naquele dia em que se assustou com o filho olhando sei lá o quê na parede, o sangue ferveu ao descobrir a roupa limpa no cesto. A mãe explicou que todo dia ajudava o Pedro a trocar a roupa da escola, olhava ele chegar ao terreno, fazia as coisas da casa e esperava a hora de chamá-lo, conforme o ritual que o marido tinha lhe dado. Ele esquecera de acrescentar à mulher que a roupa deveria estar suja. Ficou com raiva. Silêncio. Ela esperava a reação do marido, era boa em esperar.
Em disparada pro quarto do Pedro, o pai pensou em sacudi-lo até que dissesse algo. Abriu a porta, a luz do corredor revelou a cama. O menino deitado, tranqüilo, de costas, o rosto voltado pra janela fechada. Viu o filho dormindo. Já Pedro, sentia o pai fechando a porta e sumindo. Os olhos do Pedro vidrados num filete de luz vindo da rua. Ele não sofria de nada, uma hora acaba falando. O pai e a mãe esperaram.. A vida seguiu seu curso e o casal passou se esqueceu da vida íntima, daquilo que aproxima os casais, do casamento. Perderam a cumplicidade.
Naquela tarde em que Pedro não se sujara, os meninos notaram algo diferente nele. Não estava sentando na pedra de sempre. Os olhos haviam encontrado aberturas estreitas e compridas no chão seco. Perdeu o olhar nelas e foi seguindo o caminho que elas formavam. A tarde já anunciava a noite e o Pedro continuava no caminho sem dar conta do tempo, até dar de cara com o muro alto no fim do terreno.
Foi só no quinto chamado que o Pedro atendeu a mãe, que também não deu conta do tempo, como se tivesse chamado o filho apenas uma vez. Quando o marido voltou do quarto do filho, quem levou a sacudida, foi ela. Ele esbravejou, ela ouviu. Os dois choraram juntos. Foi a primeira vez que o silêncio os confortou. Abraçados, deixaram a noite cair. A esperança pegou carona num filete de vento vindo da janela.
No café da manhã de sábado, Pedro viu os pais sentados lado a lado à mesa, tirou o miolo do pão e os espiou pelo buraco. O pai tentou sorrir, a mãe pegou o pão do menino e passou margarina. Pedro não sabia que o pai ficaria o fim de semana inteiro em casa, sem clube, futebol nem carteado, nem que o pai o vira desencostar a TV da parede pra olhar mais de perto a rachadura. Sequer se dera conta do pai seguindo-o até o muro que ele tanto olhava. O pai fechou as mãos, hesitou. Precisava de uma solução.
No almoço Pedro ficou sob o olhar vigilante do pai. Finda a refeição, a mãe foi pro ritual de sábado, Pedro retirou um livro da estante e foi pra sala, o pai logo atrás, escondido numa leitura fingida de um jornal velho. O menino colocou o livro deitado na frente dos olhos abrindo-o só um pouquinho. Pela abertura olhou em volta da sala, depois a rachadura da parede. Dentro dela e mais além, um universo inteiro se abria só pra ele. A respiração tranqüila, o corpo relaxado, a mente voando longe.
Os olhos do pai passando por cima do jornal, depois acima da cabeça do Pedro, pela abertura do livro até a parede, sem entrar na rachadura. O pai, congelado, tentava entender. O corpo tenso, as mãos suando. Susto: o livro estava virado em sua direção, com um olhar profundo no outro lado. Não conseguiu encarar. Saiu da sala, atordoado. Tentou dormir. Trancou-se no banheiro, “um banho gelado dá cabo nisso”, porém o olhar do filho o seguiria aonde fosse.
O pai se viu nos olhos do filho, viu a própria fraqueza. Isto doía no orgulho de homem. Sentiu ódio do menino, depois de si mesmo. A tranqüilidade inabalável do Pedro era um tormento e seu olhar intenso estava impresso a sua volta, nos azulejos, na pia, na porta fechada. Lembrou da perseguição ao filho, das roupas limpas no cesto, do ritual dado à mulher, das mudanças de cidade. Susto maior: refletida no espelho, a rachadura da parede da sala. O que fazer?
Era noite quando saiu do banheiro, decidido, rumo ao quarto do Pedro. Encontrou a mulher no corredor, olharam-se por milésimos de segundo e entenderam-se. Ela, do lado de fora, calma como de costume, deixou-o entrar. O marido parecia outro, um tom de alívio no rosto, “dever cumprido”, quando saiu do quarto deixando atrás de si, apenas uma fresta.