quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

9ª dose

Resposta nenhuma. Felipe sente a mãe saindo, cléc, tummm. Sozinho de novo, no escuro do quarto. O único sinal de luz deve ser aquele debaixo da porta, vindo do quarto dos pais. Veja bem, deve ser é uma suposição, porque ele não arrisca abrir os olhos. Sozinho, sempre pensa coisas pra espantar o medo.
Não entende o que se passa com os adultos, “a vida deles era pra ser mais fácil, gente grande pode o que quiser! Criança é que vive difícil, não pode nada, adulto diz não pra tudo”. Fica pensando na cozinha da sua casa quando crescer. “Vai ter uma só com leite condensado, um monte de latinhas abertas cada uma com uma colher. Outra coisa que quer é um armário só com camisas pra sujar de suco e na toalha da mesa estará escrito: “Por favor, derrame seu suco aqui”. Na casa do Felipe quase sempre ele ou a irmã derramam alguma coisa na mesa e a mãe emenda um “qual é o dia? Qual é o dia que vocês não derramam nada?”. O que ele não entende é que quando algum adulto derrama, ninguém abre o bico. Só fica a vontade de dizer passando da cabeça pra garganta, da garganta pros olhos, dos olhos dele pros da irmã, dos da irmã pros dele, e dos dois pares de olhos pros pratos, com um sorrisinho no canto da boca.
O que não tem cabimento mesmo, mesmo para a criança mais paciente do mundo, é quando os pais deixam os filhos brincarem na rua e na hora de voltar pra casa ficam chiando por conta dos pés sujos. “Menino, por onde você andou que tá com os pés encardidos? Parece que você procura lama pra pisar de propósito!”
Mas hoje ele cismou com outra coisa. “Mãe, por que eu e a mana, que somos pequenos temos que dormir sozinhos e de luz apagada? E você e o pai que são grandes dormem juntos e com a luz acesa?”. Ela riu, e até que procurou uma resposta. Felipe sempre a deixa assim, sem saber o que dizer. Ele por sua vez pensou “vai saber! Adulto complica tudo mesmo.” Pensou de novo, “no fundo eu até que sou corajoso”. E dormiu.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

8ª dose - "o mar tem rosto?"

O menino foi catando coisas pelo caminho. Um toco de pau ali, umas pedras acolá, um pedaço de cano que encontrou num terreno de uma casa em construção. A menina, não. Comportada, segurava a mão do homem com a leveza das mãos das crianças. Ela cuidava onde pisava para não sujar os sapatos nem a calça. O menino só queria desbravar, as mãos já manchadas de barro. O homem, silêncio, coração apertado, angústia, solidão, pensando coisas que cabem aos adultos. Chegaram os três à praia, que estava lá só pra eles.
O homem sentou na areia úmida, marcada pela maré alta. A menina sentou ao seu lado, pegou uma vareta cansada de navegar e virou ela numa caneta ou lápis, quietinha se pôs a desenhar, escrever seu pensamento leve e solto. O menino, bem... o menino se espalhou pela praia perseguindo caranguejos, deixando rastros atrás de si, usufruindo a sua liberdade. Ambos, sendo, apenas sendo...ah...crianças. Já o homem: refletia, queria entender, então olhava o mar e depois do mar, até onde os olhos chegavam e um pouco mais além e não via. Mas a menina viu e perguntou se o mar tinha rosto. Respiração...e o homem respondeu perguntando o que ela achava. Achava que sim. Então tinha, oras! Ela sorriu.
Mais perto da água, dum morrinho de areia que a maré fez a noite toda o menino fez um mirante e de lá das alturas imensas controlava o mar com outra vareta navegada que ele fez batuta, regeu o mar, o tamanho das ondas...agora uma média, uma grande, uma onda forte! Ele olhava para o homem compartilhando seus poderes. A menina perguntou se tubarão era peixe. E baleia? O homem explicou. Ela também queria descobrir coisas. E o mar estava lá, pra eles. De repente o homem viu. Viu o mar olhando ele. Pegou a mão da menina, assoviou para o menino. Ficaram os desenhos, a caneta, a batuta, o mirante, as coisas de adultos. Ficou também o mar, olhando o três indo embora.

Escrito em julho/2009

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

7ª dose - mais infância

Bilhete – Tarefa pra Passarinho: leva o Listrado com cuidado, o vô vai saber porquê (“é junto e com acento mesmo”)

Miguel não tem tarefa hoje. A mãe resolveu que ele ia ficar em casa, a semana toda, pra ela não se sentir sozinha. Admira a forma como o menino lida com as ausências. Agora ela vai ter que dar conta de tudo. Miguel se ofereceu pra ajudar, economizando o lanche da escola ele junta uns cinco reais por semana. “Juro que junto!”. A mãe olha o filho tentando animar o Listrado, que tá tão tristinho, observa ele juntar a bolinha com guizo, o pote de ração e uma camisa velha virada em cobertor pro bichinho, embrulhando tudo. Na coleira, Miguel amarrou seu boneco preferido, “agora a fila vai sempre ficar com um lugar vago,” no peito do boneco, um buraquinho.
...
- Cachorro vai pro céu?
- Acho que não meu filho.
- E passarinho, vai?
- Passarinho vai.
...
A mãe se divide entre juntar alguns objetos do vô e olhar o que o filho faz. Junta pouca coisa, um chapéu surrado, um pente de bolso, um pequeno baú enferrujando, tudo em cima da cadeira de balanço. A cada objeto uma pausa, os olhos naufragados. Com uma mão Miguel escreve algo num bilhete, com a outra esconde. O Listrado acompanha a mão do menino, a orelha em pé, os olhinhos brilhando, esperançoso, como se entendesse as palavras silenciosas de Miguel. A mãe não se mete em ler. O filho e o vô tinham seus segredos, sempre foi assim.
...
- Se o passarinho for grande, pode carregar o que quiser?
- Acho que sim.
- Acha ou tem certeza?
- Pode sim.
- Até o Listrado?
- Hum...acho que não.
...
- Que pena, o vô ia ficar tão feliz em ver o Listrado, né?

Vinicius da Cunha setembro/2009

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

6ª dose - uma boa leitura

O Maikon K. havia me falado de Fernando Bonassi na turnê do Malasartes. O nome do autor havia ficado na cabeça e, na semana passada, me chamou a atenção na vitrine do Sebo. "Prova Contrária" é o nome do livro. Muito interessante a forma como escreve, a narrativa é rápida, sem delongas e cheia de imagens. A história vai se revelando aos poucos. E não sei o porquê, mas dá uma sensação de que a medida que eu leio é como se estivesse escrevendo o livro também ou pelo menos dá vontade de ter escrito, sei lá. Levo adiante a dica do MK.

Segue a apresentação do livro:

"Se não fosse atestada tua morte, eu jamais compraria esta casa."

Um apartamento vazio, uma mulher e o seu passado. Fragmentos que se juntam, espaços que traduzem uma ironia do destino. O sonho da casa própria se realiza diante do fim de um pesadelo. Depois de incessantes buscas, aquela mulher teve paz. Seu marido - um desaparecido político - fora finalmente considerado morto pelo governo brasileiro. A história tinha chegado ao fim. Será?

Em "Prova Contrária", novo livro de Fernando Bonassi, o leitor vai ser convidado a participar de um curioso jogo cênico. É a mulher que conversa com o homem, é ele que dá sua versão para os fatos, é o passado que se mistura com o presente. É um rico exercício de possibilidades que surpreende o leitor ao abordar - de forma original - fragilidades, medos e suscetibilidades.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

5ª dose - do ser criança

Os alunos

"Dia após dia nega-se às crianças o direito de ser crianças. Os fatos, que zombam desse direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana. O mundo trata os meninos ricos como se fossem dinheiro, para que se acostumem a atuar como o dinheiro atua. O mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em lixo. E os do meio, os que não são ricos nem pobres, conserva-os atados à mesa do televisor, para que aceitem desde cedo, como destino, a vida prisioneira. Muita magia e muita sorte têm as crianças que conseguem ser crianças." (De pernas pro ar, a escola do mundo ao avesso - Eduardo Galeano)

Querendo ou não a gente se compara com os outros, com os mais velhos e também com os mais novos e as diferenças são nítidas nas atitudes, nos hábitos, na forma de pensar e ler o mundo, na forma de ser. Não é difícil perceber as crianças perdendo a infância, é só tirarmos um pouco os olhos da tv, ou de repente, olharmos ela para além dela, ou quem sabe prestarmos atenção nas escolas, na família do vizinho. Grande parte das crianças perde a infância muito cedo. Cada vez mais elas parecem ser mini-adultos, e isso dá um medo! Não é incomum aquela fala do pai preocupado: "não quero que meu filho fique pra trás", daí o filho é inserido a seco na competitividade do mundo capitalista/consumista/e o caralho a quatro tendo que dar conta de várias competências e habilidades e fica pra trás quase todo o prazer da infância. Ou algo como "Meu filho é foda no cumputador, fala inglês, parece gente grande, já sabe o que quer desde pequeno, exige do bom e do melhor, não quer qualquer marca de tênis e tem o vídeo-game de última geração." Fala-se nos meninos-prodígio, numa nova geração de crianças com racicínio mais rápido que o das gerações anteriores e coisa e tal. "É a evolução minha gente!" Fico me perguntando pra onde vai essa infância perdida. A sociedade adoece de tantos males, não ter infância deve contribuir para alguns desses. Mas enfim, não quero chover no molhado, acho que o texto do Galeano já nos instiga o suficiente a pensar sobre. "De pernas pro ar", eu encontrei na vitrine do sebo. Não é novidade dizer que o Galeano é fantástico, mas também não custa repetir...



Da janela do carro vejo uma infância rebolando no céu, tremulando a rabiola. O vento pede licença, a pipa faz que não. O vento insiste, sopra forte. A pipa busca prum lado e pro outro. O vento tinha avisado

Pic

Agora, o menino tá solto por aí.


(Vinicius da Cunha - setembro/2009)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

4ª dose

Fui criança só uma vez. Infância tive várias. Hoje uma infância me visitou, meio apagadinha, bem leve. Rápida, dissolveu na língua, mal passou o vendedor de algodão-doce na minha rua.



Tarefa de escola nº 2 – Desenhe sua família identificando cada integrante. Você pode colorir o quanto quiser.


Dizem que as pessoas que colecionam coisas tentam cobrir algo que lhe falta. Miguel coleciona de tudo. De uns tempos pra cá deu pra colecionar buracos. O primeiro é um que ele carrega no peito. Depois vem os outros. Nos álbuns de figurinhas deixa faltar uma e nem sempre é a mais difícil de achar. Vindo da escola ele conta os buracos no asfalto, apareceram dois novos essa semana. Antes de dormir ele tira um dos bonequinhos de brinquedo enfileirados na cômoda e coloca na gaveta, faz questão de deixar um lugar vago na fila imensa. Às vezes não é ele que controla essa ausência. Nas fotos de aniversário, uma cadeira sempre ficou vazia e naquela da parede da estante, tá lá ele, de goleiro, a bola na marca do pênalti sem ninguém pra chutar. O avô é que bateu as fotos.
Pendurado na parede o seu desenho, a professora examina. Vê um morrinho inventado e no topo uma moça bonita de vestido florido, acima da cabeça um MÃE, “bem maiúsculo mesmo”. Em seguida vem o vô, sentado, “pra não cansar muito ou me esperando pra ouvir suas histórias”. Entre os dois tem o Miguel, com o buraquinho no peito. Aos pés do vô, seu inseparável companheiro, o cachorrinho Listrado. Depois do Miguel, o Listrado é a alegria do vô.
A professora quis entender o que era aquela coisa circular, pintada de preto, um pouco torta, bem no canto do desenho, quase caindo da folha.
- Um buraco ué!
- E aquele p - saindo do buraco?
- Não tá saindo não tia, tá entrando. Olha lá, o - ai até já tá dentro.
- Por quê?
Miguel lembrou dos porquês colados no caderno, não sabia qual usar nessa situação, então usou o da mãe:
- Quando eu pergunto onde tá meu pai, minha mãe sempre diz “e eu lá vou saber em que buraco seu pai se enfiou?”.
A professora deu um passo pro desenho do lado com o p- na garganta, minúsculo mesmo, mas difícil de engolir.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

3ª dose - náusea e vômito, por conta de Luiz Carlos Prestes

Experimentei mais uma vez tomar cerveja sozinho. Com duas garrafas de 600 me embebedei. Nunca fui forte com álcool, quem me conhece sabe. Mas o motivo da náusea e do vômito é outro. Gostaria aqui, de escrever o que pensei enquanto tomava solitariamente duas cervejas no bar, descrever o pedaço limitado de mundo que pude observar no ponto restrito onde me encontrava. Acontece que Luiz Carlos Prates conseguiu ser mais restrito ainda e esbanjou de sua boa dicção para fazer o que mais sabe, cometer graves equívocos e soltar absurdos por aquilo que se parece com uma boca humana, mas não há de ser.
Veja você mesmo... http://www.youtube.com/watch?v=PMTHhbwUAqw&feature=player_embedded
Fico pensando naquela imagem do jornalista atrás da mesa aparecendo apenas da cintura pra cima, de terno e samba-canção de coraçãozinho. Será que a samba-canção do Prates tem a foto do Figueiredo estampada?

É só...

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

2ª dose: um pouco de infância

Minha infância tem me surpreendido com frequência nos últimos dois meses. Entre cheiros e lugares, histórias e sonhos, tenho me encontrado com meu eu-menino. E às vezes me vejo no meu sobrinho e no olhar dele acerca das coisas. Em outras ocasiões apenas admiro o jeito dele fazer poesia sem querer... Tudo isso me despertou ao risco de escrever coisas sobre o universo infantil. Divido aqui, meus riscos.

Tarefa de escola: Nº 1 – Recorte por que separado, porque junto, por quê separado com acento circunflexo e cole no seu caderno.

Dia desses Miguel decidiu sua vida. Definitivamente, como sempre. Nunca volta atrás. Já foi bombeiro, policial, astronauta, encantador de nuvens, motorista de caminhão-pipa, corredor de Fórmula-1, jogador de futebol, professor, médico, soltador profissional de pipa, campeão mundial de chinelada em pernilongo na parede e, todos os dias, super-herói. Tudo em oito anos de existência. Veja lá, eu disse oito anos. Vida intensa. Crianças são assim...incansáveis.
- Quando crescer, vou ser inventor de poesia.
A mãe achou bonitinho.
- Que lindo o meu filho!
Ontem, quando Miguel chegou da escola e soltou um “assim não dá!”, ela quis saber o motivo.
- Mãe, tô perdido, roubaram os meus porquês!
Ela ficou pensando. “Ele levou a sério esse negócio de poeta”.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

1ª dose - "O inferno, se existe, é com certeza um lugar cheio"

Por hoje, não sei direito o que escrever aqui. Deveria ser uma postagem legal de abertura mas o dia me sugou demais a energia. Hoje fiquei a tarde toda no Presídio Regional de Joinville atendendo seus internos. Gente cujos olhos só brilham com o choro - os que ainda tem o que chorar. O certo é que poderia falar aqui de muita coisa que vi e que não gostaria de ter visto. Vou seguir a sugestão de um amigo e falar pouco. Sistema carcerário é um dos grandes dilemas da sociedade, embora assumido por poucos como tal. É difícil concluir qualquer coisa. Transcrevo abaixo um trecho do livro "Ó", de Nuno Ramos, uma preciosidade a que tive contato recentemente. Uma dose de reflexão, talvez...



"No entanto, é extramamente significativo que, ao prendermos as pessoas, as estejamos condenando a perder tempo. Na verdade, a sentença utiliza, quando castiga o réu, o tempo que ignorou ao julgá-lo. Uma condenação à prisão perpétua, até a morte, portanto, é a expressão invertida de uma falha da sentença, que precisaria, para ser efetivamente justa, examinar o caso desde o nascimento. Ao invés disso, condenamos um único ato (o crime), isolado da naturalidade que o viu nascer, da luz que bateu naquele dia, dos sons que chegavam aos ouvidos do criminoso, do sentimento que o afligia, do sonho que teve na noite anterior, transformando através dele todos os atos futuros do condenado em atos perdidos, como fumar guimba atrás de guimba, por anos incontáveis, num pátio cercado de guardas, ou construir um túnel que nunca alcançará o outro lado do muro". (trecho extraído do Livro "Ó", p. 84/85 Galinhas, justiça)