quarta-feira, 17 de março de 2010

17ª

Luis Xavier. Pescador, caçador, e contador de histórias, isso praticamente é ser contador de histórias por três vezes ao mesmo tempo! De todas as mentiras que ele já contou, a mais verdadeira foi aquela de quando pescou um bagre que tinha engolido um rádio. O pessoal do boteco do Keka já levava tudo como a mais pura verdade, porque a diferença é pequena mesmo, ainda mais quando você é quem escolhe. O seu Luis, acreditava em tudo o que contava sempre. E foi assim com a história do bagre.

- Conta aí seu Luis, aquela do bagre.

Certo dia, voltei da pesca, limpei um bagre que tinha pego, gordo, barbudo. Botei a cabeça do bagre apoiada numa boca apagada do fogão"pra fazer companhia" hehehe. O resto do peixe na frigideira. Chiaço normal do óleo quente...de repente um barulho estranho: zzzzum...ióóó...ziunzoim...schiiiii....tic tic tic....zzzzziiiinn.... Aquele susto. Num entendia de onde vinha, olhei pros zóio de peixe morto da cabeça do bagre, pra saber se o bicho tava morto mesmo. Vai saber, hoje em dia... Falei pra cabeça: "Tu, eu sei que não falou".
- E o bagre seu Luis?
- Pior que num respondeu. Virei o bicho na frigideira e o ruído parou. Olhei de novo, desconfiado, pra cabeça mas não vi diferença nenhuma no olhar do bagre. Virei de novo na frigideira, comecei a bater com o garfo na barriga do bicho e o som voltou. Dei uma batida mais forte e aumentou o volume. Dei outra com a mesma força e o volume aumentou de novo. "To pegando o jeito", pensei. Baixei o fogo e fiquei ali, fritando o peixe, batendo uma vez com força e outra vez mais leve. Experimentei bater com a faca pra ver que efeito dava. Um bagre na minha mão, leva uns quinze minutinhos pra ficar pronto, aquele não, já se iam uns quarenta que eu tava virando, batendo, garfando, tudo em fogo baixo, já disse. O arroz tava frio na mesa e a água pro pirão ia ter que voltar pra chaleira. E eu não sossegava, suado, insistia em maltratar o bagre. Enfim, depois de tanto cutucar o peixe, que de peixe só tinha a lembrança e o cheiro espalhado pela casa, consegui sintonizar uma estação de rádio. E vocês não vão acreditar...
- Fala homem.
- A pilha acabou e eu saí pra comprar comida, que eu tava cuma fome!

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A verdade melhor, é que eu realmente conheci o seu Luis Xavier!

segunda-feira, 15 de março de 2010

16ª

Os dias em que mais tenho coisas a fazer são os que mais me fazem pensar em coisas além das quais eu devia fazer.
Hoje me peguei pensando, estou a quase dois anos trabalhando no Poder Judiciário de Santa Catarina, na área criminal. Algo muito diverso do que pensei pra mim, embora tenha feito o concurso em 2005. Estava atrás de um emprego na época. Acabei sendo chamado 3 anos depois, sem esperar, justo na fase do desespero pós-universidade, quando a gente desperta pro mundo e se dá conta de ser um desempregado graduado! Mas quero chegar em outro ponto. Quando entrei no Judiciário, encontrei um universo em grande parte diferente do qual estive imerso nos 4 anos de universidade. Me deparei com muitos preconceitos, inclusive os meus! Sempre me chocou a visão de algumas pessoas acerca dos presos e de seus crimes. Aprendi com amigos e professores a analisar contextos que condicionam as ações humanas em diversos âmbitos, a respeitar diferenças, compreender ou buscar a compreensão dos processos porque passam as sociedades, os grupos, as comunidades. Já no primeiro mês de trabalho tivemos de prender uma pessoa que descumprira algumas condições de sua pena. As minhas pernas tremiam, meu coração disparou, suei frio, tive vontade de chorar, me senti um lixo, meu corpo todo se contraiu com a cena. Me disseram que com o tempo me acostumava. Mas pra mim era certo, "não tem como me acostumar". Naquele momento não me importava que delito o fulano tinha cometido, quem fora a vítima. Ele era um ser humano sendo privado da liberdade. Mais tarde, fiz uma visita ao Presídio Regional de Joinville. O cheiro que sobe das celas imundas é desagradável. Porque não é cheiro de roupa suja, de chão sujo, de resto de comida, de fezes e urina, mas sim, cheiro de GENTE, de pela ensebada, de suor, de privação, de raiva, de medo, de rancor, de vingança, de conformidade, uma mistura que não desce por estômago nenhum. Saí de lá com no mínimo o triplo do meu peso sobre os ombros. No decorrer de quase dois anos, muitas pessoas foram presas no balcão, por motivos semelhantes e justicativas diversas. Passei a compreender o "processo" de pessoas que pouco se importavam, ao meu ver, com o "processo" dos condenados. E percebi que aos poucos a gente se vê imerso numa realidade que poucos conhecem. Outra sensibilidade se constrói. E é muito difícil você olhar o outro, o condenado, sem julgá-lo. Sempre repeti para mim mesmo. O condenado já foi julgado pelo juiz, não cabe a mim fazer o mesmo, não é minha função. Hoje percebo que de certa forma, o julgamento começa por nós, funcionários/pessoas comuns pelo menos em termos de moral. E nossas ações, nossas obrigações são apenas a continuidade daquilo que a sociedade ofereceu, ou deixou de oferecer para todos e que se materializa no cumprimento seco e por vezes literal da LEI. Até aí nenhuma novidade, apenas uma velha constatação. O que me dói hoje, é perceber em mim uma raiva daqueles que cometem crimes bárbaros, daqueles que não saem do mundo do crime. Não mudou a minha percepção e entendimento da realidade que pode ter levado as pessoas a cometerem seus crimes, embora questione muitas vezes o momento da escolha que acredito ter havido em muitos dos casos. Não sei, mas às vezes penso que por mais que nossas ações sejam reflexos da coletividade, das circunstâncias e condições que nos cercam, talvez exista um momento X de individualidade que não me permite aceitar a escolha feita por uns - o estupro de uma criança, o assalto a uma velhinha, o sequestro, o atropelamento causado por um bêbado, o tráfico e tudo mais. Daí passa pela cabeça, a lei do Taleão, "olho por olho, dente por dente", e me percorrem por dentro desejos odiosos e tristes. Então me deparo com uma face de mim que negava anteriormente. Isso me desestabiliza. Falo daquela raiva e daquela fala dura de muitas pessoas, "tem que sofrer pra pagar, pena de morte, paredão". Mas isso não é nada definitivo, pelo contrário, denota mais o grito causado pela nossa fragilidade, embora não deixamos de ser algozes de certa forma. É doido, controverso e logo, infecaz, pensar em projetos de atitudes desumanas que vem em mente para proteger uma certa humanidade, isso soa um tanto "primitivo", "bárbaro". Isso me desestabiliza, mas não a ponto de abalar completamente o que acredito. Fico feliz em dizer que não me acostumei a presenciar a prisão de pessoas, que judicialmente, moralmente, que na visão popular merecem ser presas.
Não queria chegar a lugar nenhum aqui. Só falar um pouco dos meus dias.
Sou ator e professor de história (não atuante em sala de aula) e isso me salva quase sempre e me condena todos os dias, ainda bem.